quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Situs orbis, veritas in nobis

A agonia que sentia todos os dias desde que parti de Lisboa nunca se acalmou. Hoje também não estava melhor. Finalmente o mar estava sereno e a lua permitia ver um rastro de luz até ao horizonte.

A agonia não era só causada pelos balanços do mar, mas também pelo cheiro nauseabundo que se espalhava por todo o navio.

Por que me teria escolhido o Rei para esta missão? Por que foi escolher um fidalgo recém letrado, defensor da verdade da ciência acima de tudo? Porque tivera eu a desventurada encomenda de espiar alguém que tanto admirava? O lenço de renda que trazia no bolso recordava-me a razão que me levara a aceitar esta missão, mas por mais que pensasse não conseguia entender porque me teria D. Manuel confiado semelhante tarefa.

A agonia era causada também pelo medo. Medo de não corresponder às expectativas do Rei e de não conseguir levar relatado o que ele queria ler. Ou, ao invés, medo de ceder à pressão e de declarar algo que não correspondesse à verdade. Medo de condenar assim um homem que tanto fizera e continuava fazendo pelo nosso reino e pela ciência.

Em Lisboa, a grandeza das descobertas era medida por palmos de terra conquistada, pelos recursos que aí se encontravam, ou pelas fortalezas que aí se edificavam. Mas e o conhecimento? A ciência? Não era em si um bem inestimável?

O Rei estava mais preocupado com questões que não iam mais longe do que a sua corte. Não se preocupava com o valor do conhecimento, que naquele momento não estaria nas mãos de mais ninguém.

Por esta altura estariam muitos soberanos europeus a arquitetar formas de conseguir os conhecimentos marítimos e geográficos que estavam na posse exclusiva de Portugal. Estariam por esta altura a encomendar assassinatos, a contratar espiões, navegadores, geógrafos, a preparar elevadas quantias para comprarem manuscritos, pessoas e influências. Estariam a tecer uma tapeçaria de conspirações políticas fazendo alianças e intrigas entre eles e com a igreja. E estava D. Manuel preocupado com Duarte Pacheco Pereira?

Perante a imensidão do mar e da terra, sentia-me muito pequeno. Perante a magnitude do Rei, do seu poder, do absolutismo das suas ordens, sentia-me muito pequeno. Perante a soberania dos interesses políticos, das intrigas, dos favores, sentia-me muito pequeno. Perante o valor daqueles conhecimentos e perante a imensidão de gentes que os iria ler, sentia-me muito pequeno.

Pensei que no futuro a realidade que conhecia não mais existiria. Que outros reis viriam, que outras terras seriam descobertas, que outras guerras seriam travadas. Portugal poderia ser um império inquestionável ou poderia perder todas as suas conquistas... O que ficará para o futuro? De que valerá esta agonia constante, o sofrimento dos navegadores de Portugal sujeitos às tempestades e às pestes, não só dos mares mas também das cortes?

Olhando novamente a lua, desconfiei que estava a delirar. A agonia continuava. Seria de novo uma febre?

Voltei para os meus aposentos e comecei a transcrever os apontamentos que Duarte Pacheco Pereira tinha reunido hoje.

Era admirável a sua precisão e a sua perseverança.

Tinha desistido de vasculhar as suas coisas, de procurar algum código secreto nas suas notas. Estava convencido de que não existia nenhuma conspiração, nenhuma espionagem encomendada por Espanha.

Olhei pela minha janela e já nascia o dia. Deixei cair o meu olhar sobre o monte desorganizado de mapas e papéis que se acumulava sobre a secretária. Por debaixo do monte espreitava uma ponta do lenço de renda. Esse lenço, que fora outrora de um branco imaculado, acompanhava-me todas as noites e estava agora marcado com os borrões de tinta que, devido ao cansaço ou ao balanço do mar, ia deixando cair. Peguei no lenço e senti vagamente o seu perfume. Lembrei-me de Catarina e do verdadeiro motivo que me levara a aceitar tamanho desafio.

A mão de Catarina era parte de um acordo entre duas famílias influentes na corte. Acordo que D. Manuel fizera questão de negociar pessoalmente.

A esperança de que esta missão fosse prova suficiente da minha lealdade perante o Rei, estava cada vez mais dissipada. O facto de voltar a Lisboa sem qualquer indício ou motivo para formar acusação contra Duarte Pacheco Pereira, fazia-me duvidar de conseguir os propósitos desta minha viagem. Cair nas boas graças de Sua Majestade e conquistar o seu reconhecimento estava tão longe quanto Lisboa estava do sítio onde me encontrava. Mas, de facto, estava fora de questão levantar falsos testemunhos contra tão nobre navegador. Se o fizesse, ganharia Catarina ou perderia Catarina para sempre? Ainda que o fizesse, nada obrigava o Rei a cumprir com a sua palavra. Uma vez mais senti-me muito pequeno. Ainda que D. Manuel mantivesse a sua palavra, ainda que me distinguisse e concedesse a sua autorização, eu poderia ficar com Catarina para sempre e, de certo, para sempre também com a minha culpa. Catarina ficaria assim desposada com outra pessoa que não eu. Uma outra pessoa que ela não reconheceria nem amaria. Seria esse um melhor destino do que aquele que lhe estava reservado desde a sua infância?

Cheirei uma última vez aquele lenço e tomei, em consciência, uma decisão.

Olhei pela minha janela e contemplei a imensidão do mar e do sol. Desta vez, não me senti assustadoramente pequeno, senti-me apenas pequeno e sorri.

Indisposição

Vê-se ao espelho todos os dias, sem hora marcada. Vaidosa. Não é defeito, é feitio, justifica-se. Após seringas de botox pelas latitudes obesas e diversas costuras disfarçadas em cimeiras de entendimentos, vendidos a preço de saldo, adora pavonear-se pelos becos das capitais do terceiro mundo. Adora beijar-se a si própria de tão autista que se tornou. Olha, mas não consegue ver. Aos domingos à tarde roda em sentido contrário para calar a boca aos críticos que a acusam de entrar numa rota de auto-destruição. A cada dia abre novos buracos criando uma atmosfera desfiltrada, que faz retornar Copérnico ao centro das palavras. Está desapontada com o Sol na sua pele estaladiça. Torna-se desfigurada. Se tivesse um buraco enfiava-se nele. Deu o passo em frente e nem deu por isso. Odeia ser engolida assim, por si própria. Vinte e quatro horas inanimadas depois, acordou mal disposta. Não se pode engolir uma Terra assim. Causa indigestão.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Solidão

“... a lua o lado escuro é sempre igual
no espaço a solidão é tão normal
desculpa estranho eu voltei mais puro do céu...”


Ptolomeu era seu nome.
Sim. Seu pai era um apaixonado pelas estrelas. Um curioso da astronomia. Já seu filho deixou sua vida completamente de lado a mais de quinze anos. E como um corpo errante vive em seu laboratório noite e dia.
Nada mais lhe importa. Esqueceu de sua família alguns meses depois que Estrela nasceu e Vênus tinha mais de quatro anos. Sua esposa tentou por muito tempo partilhar de sua incessante busca para provar a existência de um novo planeta. Afinal era a única maneira que tinha para ficar ao lado do homem que amava. Mas quando percebeu que esse novo corpo celestial parecia ter uma forma de mulher e que ele não retornaria mais a razão. Desistiu.
Foi embora levando suas filhas sem que essas pudessem entender o porquê o pai trocava o nome das duas. Já que ele escolheu cada um deles. Sofreram.
Ptolomeu não. Por muito tempo mal se deu conta de que estava só naquele imenso lugar. Agora após alguns anos já não comia mais. Dormia umas duas horas até o mês passado. Banho ele não imaginava o que poderia ser. Estava completamente envolvido no final de sua busca desenfreada para provar a todos da comunidade científica que seus estudos tinham fundamentos. Havia um novo planeta. E ele estava muito próximo da terra. E chegaria mais e mais. Até tocá-la.  
Loucura todos diziam. Não falam mais com ele. Nem seu amigo da faculdade que sempre partilhava as paixões pelo universo e seus mistérios. Estava completamente só.
O grande dia estava próximo. Seu corpo doía e já sentia se esgotado pelas necessidades que passava. Entrou em delírio. Sofria a angústia do amante que espera pela sua amada há tanto tempo escondido de todos. Quer mostrá-la. Acredita que chegou o momento. Isso o deixa por alguns momentos eufóricos. Esquece tudo e todos.
Ela chega. Vestida de negro. Não está feliz pelo encontro como ele imaginou. Esta cada vez mais próxima e não sorri. Sua estrela não brilha. Seu nome? Solidão.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Lisboa

Como se estas águas do tejo tivessem sido o meu primeiro lençol, como se nesta calçada, onde os paços se prologam, tivesse estado sem estar presente… assim te sinto menina, assim te quero moça, como se fosse aqui a minha maternidade.

Há lugar no tempo e o espaço é geometria, com escadaria para o rio, navegantes e comércio, uma odisseia que por cá passou; e começo a caminhar rumo às colunas, assim me sossego de encontro ao mármore… se por um breve instante sentisse aquele ímpeto; água doce por momentos, um mar para todo o sempre, cabos e tormentas, barreiras para saltar… outros e tantos como eu no encontro de outros e tantos diferentes de mim… no amarelo das fachadas a projeção de amores e a recompensa! Fui e vivi.

Se houvessem doces saturnos do trotear de uma guitarra… que esta tocasse aos pés do cavaleiro; e no centro da praça o harmónio de vida que não travasse de memória para outros tempos que nestes, não são mais que paz de espírito… sim! Cheira bem, papoilas que crescem nas arcadas deste hectare de sonhos passados… com a diferença destes porque foram vividos… iguais a estes porque querem muito ser presente!

Lisboa, Praça do Comércio… daqui te quero tanto! 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Lisboa a preto e branco

Lisboa...
Dos recantos e encantos...
Lisboa dos jardins
Dos quiosques e esplanadas
Lisboa a preto e branco
Da calçada e dos eléctricos
Das escadinhas e ruelas
Das tasquinhas
Das floristas
Lisboa Das praças
Dos Teatros e museus
Lisboa do sol e do Tejo
Lisboa das esquinas
Dos loucos e dos artistas
Dos Que pintam, dos que pedem
Dos que dormem na rua
Lisboa dos Que respiram Lisboa
Dos Que amam, dos que odeiam
Dos que passeiam pl'o Chiado
De olhar fascinado
Dos que caminham sem sentido
De olhar vazio ou perdido
Lisboa dos recantos e desencantos
Lisboa já foi romana
Foi porto, foi passagem
Abrigo de viajantes
Lisboa Já foi das descobertas
Foi império, foi coragem
Lisboa já foi dos cravos
Da esperança, da liberdade
E dos seus heróis e poetas
Lisboa Não é velha, nao é moça
Não é pobre nem é rica
Lisboa é multidão e solidão
É euforia, nostalgia
Lisboa será sempre Lisboa
Lisboa do Fado...
Lisboa saudade...
Lisboa a Preto e branco...

Lisboa luminosa

Lisboa é uma mulher exuberante e luminosa. Imponente. Chama a atenção de todos que a olham. É cheia de cores. Brilhos. É dessas mulheres que quando passam todos os homens param para olhar com desejo e as outras mulheres olham com admiração e muitas vezes com inveja.
Se a conhecer num dia de sol com certeza vai se apaixonar imediatamente. Será fulminante e para sempre.
E pode acontecer em qualquer lugar. Na magnífica construção do Mosteiro dos Jerónimos e seus lindos arcos. No jardim da Praça do Império com sua fonte encantadora e mágica que na verdade chama-se Luminosa.
Na Praça do Comércio, ou Terreiro do Paço e seu imponente monumento a D. João I e o Arco Triunfal da Rua Augusta.
Caminhando pelas ruas do Rossio ou Chiado, com seus restaurantes, lojas, cafés. O maravilhoso teatro D. Maria II e a agitação dos turistas de todos os lugares do mundo.
Também, nos metros que partem da linda estação azul de Santa Apolónia e de onde se pode chegar a qualquer parte dessa cidade. Ou do país com seus comboios intercidades.
Na agitada Avenida da Liberdade. Na Praça Marquês de Pombal. Em Arroios. Em Campo Grande. No Príncipe Real.
Mas se quiser mais encantamento pode encontrar em qualquer um dos miradouros que completam suas sete colinas.  O da Graça. O de Santa Catarina, que muitos conhecem como Adamastor. O de Santa Luzia com seus azulejos lindos e a visão do Panteão Nacional, Tejo, Igreja São Vicente de Fora e de Alfama com seus tradicionais prédios.  Em qualquer outro miradouro. Todos belíssimos. Fascinantes.
Lisboa é assim, inesquecível e luminosa. Adamastor seu escravo. Fernando boêmio vencido por ela e nós simples mortais fascinados eternamente.