A agonia que sentia todos os dias desde que parti de Lisboa nunca se acalmou. Hoje também não estava melhor. Finalmente o mar estava sereno e a lua permitia ver um rastro de luz até ao horizonte.
A agonia não era só causada pelos balanços do mar, mas também pelo cheiro nauseabundo que se espalhava por todo o navio.
Por que me teria escolhido o Rei para esta missão? Por que foi escolher um fidalgo recém letrado, defensor da verdade da ciência acima de tudo? Porque tivera eu a desventurada encomenda de espiar alguém que tanto admirava? O lenço de renda que trazia no bolso recordava-me a razão que me levara a aceitar esta missão, mas por mais que pensasse não conseguia entender porque me teria D. Manuel confiado semelhante tarefa.
A agonia era causada também pelo medo. Medo de não corresponder às expectativas do Rei e de não conseguir levar relatado o que ele queria ler. Ou, ao invés, medo de ceder à pressão e de declarar algo que não correspondesse à verdade. Medo de condenar assim um homem que tanto fizera e continuava fazendo pelo nosso reino e pela ciência.
Em Lisboa, a grandeza das descobertas era medida por palmos de terra conquistada, pelos recursos que aí se encontravam, ou pelas fortalezas que aí se edificavam. Mas e o conhecimento? A ciência? Não era em si um bem inestimável?
O Rei estava mais preocupado com questões que não iam mais longe do que a sua corte. Não se preocupava com o valor do conhecimento, que naquele momento não estaria nas mãos de mais ninguém.
Por esta altura estariam muitos soberanos europeus a arquitetar formas de conseguir os conhecimentos marítimos e geográficos que estavam na posse exclusiva de Portugal. Estariam por esta altura a encomendar assassinatos, a contratar espiões, navegadores, geógrafos, a preparar elevadas quantias para comprarem manuscritos, pessoas e influências. Estariam a tecer uma tapeçaria de conspirações políticas fazendo alianças e intrigas entre eles e com a igreja. E estava D. Manuel preocupado com Duarte Pacheco Pereira?
Perante a imensidão do mar e da terra, sentia-me muito pequeno. Perante a magnitude do Rei, do seu poder, do absolutismo das suas ordens, sentia-me muito pequeno. Perante a soberania dos interesses políticos, das intrigas, dos favores, sentia-me muito pequeno. Perante o valor daqueles conhecimentos e perante a imensidão de gentes que os iria ler, sentia-me muito pequeno.
Pensei que no futuro a realidade que conhecia não mais existiria. Que outros reis viriam, que outras terras seriam descobertas, que outras guerras seriam travadas. Portugal poderia ser um império inquestionável ou poderia perder todas as suas conquistas... O que ficará para o futuro? De que valerá esta agonia constante, o sofrimento dos navegadores de Portugal sujeitos às tempestades e às pestes, não só dos mares mas também das cortes?
Olhando novamente a lua, desconfiei que estava a delirar. A agonia continuava. Seria de novo uma febre?
Voltei para os meus aposentos e comecei a transcrever os apontamentos que Duarte Pacheco Pereira tinha reunido hoje.
Era admirável a sua precisão e a sua perseverança.
Tinha desistido de vasculhar as suas coisas, de procurar algum código secreto nas suas notas. Estava convencido de que não existia nenhuma conspiração, nenhuma espionagem encomendada por Espanha.
Olhei pela minha janela e já nascia o dia. Deixei cair o meu olhar sobre o monte desorganizado de mapas e papéis que se acumulava sobre a secretária. Por debaixo do monte espreitava uma ponta do lenço de renda. Esse lenço, que fora outrora de um branco imaculado, acompanhava-me todas as noites e estava agora marcado com os borrões de tinta que, devido ao cansaço ou ao balanço do mar, ia deixando cair. Peguei no lenço e senti vagamente o seu perfume. Lembrei-me de Catarina e do verdadeiro motivo que me levara a aceitar tamanho desafio.
A mão de Catarina era parte de um acordo entre duas famílias influentes na corte. Acordo que D. Manuel fizera questão de negociar pessoalmente.
A esperança de que esta missão fosse prova suficiente da minha lealdade perante o Rei, estava cada vez mais dissipada. O facto de voltar a Lisboa sem qualquer indício ou motivo para formar acusação contra Duarte Pacheco Pereira, fazia-me duvidar de conseguir os propósitos desta minha viagem. Cair nas boas graças de Sua Majestade e conquistar o seu reconhecimento estava tão longe quanto Lisboa estava do sítio onde me encontrava. Mas, de facto, estava fora de questão levantar falsos testemunhos contra tão nobre navegador. Se o fizesse, ganharia Catarina ou perderia Catarina para sempre? Ainda que o fizesse, nada obrigava o Rei a cumprir com a sua palavra. Uma vez mais senti-me muito pequeno. Ainda que D. Manuel mantivesse a sua palavra, ainda que me distinguisse e concedesse a sua autorização, eu poderia ficar com Catarina para sempre e, de certo, para sempre também com a minha culpa. Catarina ficaria assim desposada com outra pessoa que não eu. Uma outra pessoa que ela não reconheceria nem amaria. Seria esse um melhor destino do que aquele que lhe estava reservado desde a sua infância?
Cheirei uma última vez aquele lenço e tomei, em consciência, uma decisão.